A microempresa e o direito de preferência nas licitações baianas

A microempresa e o direito de preferência nas licitações baianas

Elaborado em 12/2010.

Lair Faria Azevedo

 

Considerando que a Lei Baiana de Licitações e Contratos (Lei n° 9.433/05) estabelece a inversão das fases de classificação e de habilitação, surge dúvida acerca do momento apropriado para o exercício do direito de preferência das microempresas (ME) e das empresas de pequeno porte (EPP) previsto na LC n° 123/06.

Assim, o presente trabalho visa contextualizar o direito de preferência da ME/EPP em face da Lei Estadual n° 9.433/05, enfrentando as seguintes questões: 1)A ME/EPP pode apresentar nova proposta de preço quando as licitantes que ofertaram os menores preços foram inabilitadas? 2) É possível que a ME/EPP licitante exerça o direito de preferência previsto nos arts. 44 e 45 da LC n° 123/06 duas vezes?

A Lei Complementar n° 123/06 trouxe um tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte quanto ao cumprimento de obrigações tributárias e trabalhistas; ao acesso a crédito e à aquisição de bens e serviços pelo Poder Público.

Conforme a redação do art. 45, I da LC n° 123/06, “a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado“. É o denominado direito de preferência:

Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte. § 1º Entende-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada. § 2º Na modalidade de pregão, o intervalo percentual estabelecido no § 1º deste artigo será de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço.

Art. 45. Para efeito do disposto no art. 44 desta Lei Complementar, ocorrendo o empate, proceder-se-á da seguinte forma: I – a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado; II – não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa de pequeno porte, na forma do inciso I do caput deste artigo, serão convocadas as remanescentes que porventura se enquadrem na hipótese dos §§ 1º e 2º do art. 44 desta Lei Complementar, na ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito; III – no caso de equivalência dos valores apresentados pelas microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrem nos intervalos estabelecidos nos §§ 1º e 2º do art. 44 desta Lei Complementar, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta. § 1º Na hipótese da não-contratação nos termos previstos no caput deste artigo, o objeto licitado será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame. § 2º O disposto neste artigo somente se aplicará quando a melhor oferta inicial não tiver sido apresentada por microempresa ou empresa de pequeno porte. § 3º No caso de pregão, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada será convocada para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão.

Pois bem, o cerne da questão reside em saber quando o direito de preferência é exercido após a declaração do vencedor ou na fase de apresentação das propostas.

Numa primeira análise, a redação do art. 45, I da LC n° 123/06 sugere que é após a declaração do vencedor do certame já que esse dispositivo contém a expressão: “…poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame “.

De acordo com a moderna doutrina, a função do intérprete não se resume a mera descrição de significados previamente dados pelo legislador, mas sim de construção e, até mesmo, de “re-construção” desses significados. O texto legal é, hoje, entendido como mero ponto de partida da interpretação e esta deverá ter como norte a idéia de que o “… ordenamento jurídico estabelece a realização de fins, a preservação de valores e a manutenção ou a busca de determinados bens jurídicos essenciais a realização daqueles fins à preservação desses valores…“. [01]

Nessa senda, o Estatuto da Microempresa (Lei Complementar n° 123/06) teve como parâmetro a Lei de Licitações da União (Lei n° 8.666/93) e a Lei que disciplina a modalidade pregão no âmbito desse ente federativo (Lei n° 10.520/02), sendo que o inciso I do art. 45 baseia-se no procedimento da Lei n° 8.666/93 e o parágrafo 3° do art. 45 deste Estatuto refere-se à Lei n° 10.520/02.

Na interpretação desses dispositivos, não se pode perder de vista que a Lei de Licitações do Estado da Bahia detém peculiaridades, afastando-se em alguns pontos do quanto estabelecido pela Lei n° 8.666/93. Neste particular, encontra-se a inversão de fases, onde primeiro ocorre a fase de classificação e, posteriormente, a fase de habilitação.

Assim, a LC n° 123/06 deve ser interpretada de acordo com as peculiaridades da Lei Baiana sob pena de se desvirtuar o propósito da licitação e, inclusive, do próprio estatuto da microempresa.

Uma regra é elaborada com base em determinado contexto fático e para atender a uma dada finalidade. O objetivo dos arts. 44 e 45 da LC n° 123/06 é sempre a melhora das propostas (competitividade), conferindo à ME e EPP a oportunidade de oferecer o menor preço e, com isso, vencer a disputa. Até porque se a ME ou EPP não oferecer proposta inferior, o objeto da licitação será adjudicado em favor da proposta originalmente melhor classificada.

Quando o legislador previu “… vencedora do certame…” é porque na Lei n° 8.666/93 a fase de habilitação é anterior à abertura das propostas de preços. Logo, a interpretação razoável do art. 45, I da Lei n° 123/06 e em consonância com a Lei n° 9.433/05 é a de que o direito de preferência deve ser exercido na fase de abertura das propostas. Admitir o contrário implicaria em não inverter as fases da licitação. Pior, haveria uma completa confusão de fases, pois após a habilitação da melhor classificada seria reaberta a fase de apresentação de nova proposta da ME ou EPP, que, se inferior, a Comissão teria que reabrir a fase de habilitação para analisar os documentos desta.

Além disso, se a melhor classificada fosse posteriormente inabilitada, a ME ou a EPP não teria estímulo nenhum para cobrir sua oferta, o que significa que não seria alcançado o objetivo da licitação e dos arts. 44 e 45 da LC n° 123/006, que é o menor preço e a melhora das propostas.

Portanto, não há sentido em classificar a empresa que apresentou o menor preço, habilitá-la, declará-la vencedora e, só depois, ofertar o direito de preferência para a ME ou EPP. Caso em que a Administração retrocederá à fase de habilitação para analisar os documentos da EPP ou ME.

Assim, entender que o direito de preferência só poderá ser exercido após a declaração do vencedor da licitação é ir de encontro ao próprio propósito da licitação que é a disputa de preços. Sem contar que tornaria inútil o procedimento, pois haveria necessariamente duas fases de habilitação.

Aliás, mesmo na perspectiva do procedimento previsto na Lei n° 8.666/93, a doutrina considera que houve uma atecnia do legislador ao utilizar a expressão “… vencedora do certame …”. Não são poucas as críticas à redação do art. 45, I da LC n° 123/06:

A primeira crítica ao dispositivo é clara contradição entre tal faculdade outorgada a essas empresas e a busca pelo melhor preço de contratação no certame licitatório. É da natureza capital das competições entre empresas, que ao participar de um certame licitatório, seus representantes tem a exata idéia do valor mínimo com o qual elas podem disputar…

Podendo essas empresas apresentar propostas menores desde o início, por que permiti-las a prerrogativa de fornecer esse preço menor apenas depois da definição do vencedor? È equivocado tal procedimento, que parece orientar o disputante a não apresentar o seu melhor preço desde já. Parte relevante da doutrina, inclusive, vê nisso um motivo para críticas ao procedimento de lances no pregão em que tal possibilidade (de melhorar suas propostas iniciais) é aberta a todos os participante …

Advirta-se que o legislador não teve o cuidado de confeccionar um texto literalmente aplicável ao procedimento licitatório de fases invertidas, verificado no pregão. Na inversão de fases, após a definição da melhor proposta de preços, o vencedor dessa etapa ainda deverá se submeter à análise relativa à habilitação.

Seria esdrúxulo quem no pregão, antes mesmo da aferição dos requisitos de habilitação e realização da fase recursal, fosse concretizada a adjudicação do objeto contratual.

Importante verificar que a materialização desse erro, na redação dos editais, pode criar problemas sérios na tramitação do certame, uma vez que estaria sendo assegurada a adjudicação, independentemente da aferição dos requisitos de habilitação e conclusão da fase recursal.

Sugere-se que os setores técnicos tenham o cuidado de não realizar a mera repetição do texto legal, nos editais de pregão e pregão eletrônico, optando por adaptar o regramento às peculiaridades procedimentais, registrando que, naquela situação prevista pelo dispositivo, num certame caracterizado pela inversão de fases, a proposta será declarada como classificada em primeiro lugar.

Essa transcrição resguardará a coerência das fases seqüenciais do pregão, que incluirão ainda a aferição da proposta e dos requisitos de habilitação, a declaração do vencedor, abertura de prazo para eventuais recursos, e, então sim, a adjudicação e posterior homologação do certame. [02]

Por outro lado, o direito de preferência, previsto nos arts. 44 e 45 da LC n° 123/06, é para que a ME ou EPP tenha a oportunidade de ofertar o menor preço e, com isso, vencer o certame, e não de majorar sua proposta.

Segundo a doutrina, deve haver razoabilidade na interpretação dos fatos descritos em regras jurídicas como meio de preservar a eficácia de princípios axiologicamente subjacentes. A aplicação do art. 45 da citada Lei pressupõe a existência da fase de habilitação anterior à de classificação. Além disso, a finalidade desses dispositivos não é atendida se o exercício do direito de preferência for entendido após a declaração do vencedor da licitação.

Nesse sentido, o direito de preferência deverá ser exercido na fase de oferta das propostas de preços.

Além do mais, diante da peculiaridade da inversão de fases nas licitações baianas, os arts. 44 e 45 da LC n° 123/06 devem ser interpretados com base no regramento que este Estatuto confere ao pregão haja vista que neste também há a inversão de fases.

E, nesta hipótese, a LC n° 123/06 prevê, inequivocamente, que o direito de preferência será exercido na fase de lances:

LC n° 123/06. Art. 45. , § 3º No caso de pregão, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada será convocada para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão.

Vejamos os comentários da doutrina:

No caso do pregão, o “melhor preço” indicado é o resultante da etapa de proposições de lances. Terminada esta etapa, devem ser verificados quais os participantes, revestidos da condição de ME ou EPP, restaram inseridos nesse percentual de diferença, sendo chamado o primeiro, dentre estes, para fins de realização do procedimento previsto no art. 45. caso, por algum motivo, este não realize ou tenha frustrada sua proposta de desempate (por uma negativa na habilitação, por exemplo) deve ser convocado para apresentar proposta de desempate, a segunda melhor ME ou EPP classificada no percentual de diferença.

Já o art. 45 estabelece que a microempresa ou empresa de pequeno porte melhor classificada, dentre as empatadas, de acordo com os limites percentuais do art. 44, “poderá” apresentar proposta de preço inferior àquela até então considerada vencedora … podendo ser então adjudicado o contrato em seu favor.

Não sendo possível a melhora das propostas pelas empresas beneficiadas pelo estatuto, o objeto será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame. Lembramos que, no caso do pregão em que há uma inversão das fases de habilitação e propostas, a empresa classificada com a melhor proposta ainda terá que se submeter ao exame dos documentos de habilitação. [03]

Assim, o procedimento de ofertar o direito de preferência na fase de apresentação das propostas está em consonância com o objetivo do Estatuto da Microempresa e com o procedimento previsto na Lei de Licitações do Estado da Bahia.

Cumpre, agora, analisar a possibilidade de repetição do exercício do direito de preferência previsto nos arts. 44 e 45 da LC n° 123/06.

Pois bem, em face da inabilitação da 1ª classificada, será que a ME/EPP poderia se valer novamente do direito de preferência? Admitindo essa possibilidade, poderia, nesta oportunidade, ofertar preço superior ao da licitante inabilitada?

Bem, não há como a licitante exercer, pela segunda vez, o direito de preferência em razão da ocorrência do fenômeno da preclusão.

Ora, se a licitante foi notificada para exercer o direito de preferência e o fez, cobrindo a oferta das melhores classificadas, ocorreu, in casu, a preclusão consumativa, que é a perda do exercício de um direito/faculdade em razão deste já ter sido exercido. Assim, uma vez praticado o ato, pouco importa se bem ou mal exercido, não se abre mais oportunidade para a parte corrigi-lo, melhorá-lo ou repeti-lo em prol do desenvolvimento regular do processo. E é justamente essa a finalidade da preclusão: impedir a repetição de fases, evitando-se, assim, o retrocesso, a interrupção da marcha processual e a insegurança jurídica.

Além da preclusão, há outro óbice à repetição do direito de preferência: “iniciada a sessão de abertura das propostas, não mais cabe a desistência do licitante, salvo por motivo justo, decorrente de fato superveniente e aceito pela comissão[04].

Logo, a proposta apresentada, no exercício do direito de preferência, vincula a licitante, nos termos dos arts. 78, §10°, 120, III e121, X da Lei n° 9.433/05, não podendo dela desistir.

Note-se que há uma íntima relação entre a vedação da desistência da proposta e máxima do venire contra factum proprium non potest [05](proibição do comportamento contraditório) [06], inerente à cláusula geral de proteção à boa-fé objetiva (arts. 187 e 422 do CC/02).

Considera-se ilícito o comportamento contraditório por ofender os princípios da lealdade processual, da boa-fé objetiva e da confiança [07]. Se a ME/EPP diminuiu o seu preço como agora pretende aumentá-lo?

Ao exercer o direito de preferência, a licitante gerou expectativas de que esta Administração contrataria com o menor preço por ela apresentado, mas, agora, retrocede e propõe comportamento contrário ao anteriormente assumido.

Não se pode admitir comportamentos desleais, que frustrem as legítimas expectativas da outra parte. A proposta, como dito, vincula o licitante, razão pela qual é vedada a sua desistência, bem como sua modificação, salvo para diminuí-la como almeja os arts. 44 e 45 da LC n° 123/06.

Por fim, note-se que o direito de preferência é opcional, ou seja, a ME ou EPP poderá ou não exercê-lo. A redação do art. 45, I da LC n° 123/06 está a indicar, portanto, que a empresa deverá avaliar se deve ou não fazer uso dessa faculdade e, uma vez utilizando-a, cumpre-lhe assumir os riscos dessa opção.

Ante o exposto, nas licitações baianas, o direito de preferência previsto nos arts. 44 e 45 da LC n° 123/06 deve ser exercido na fase de apresentação das propostas, sob pena de preclusão, não podendo o licitante exercê-lo posteriormente, muito menos majorar seu preço diante da inabilitação da 1ª classificada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed.. São Paulo: Malheiros.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 20. ed., 2005.

CHARLES, Ronny. Lei de Licitações Públicas Comentadas, 2. ed., Bahia: Juspodvm. 2009.

CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 2001.

HUPSEL & LIMA DA COSTA, Edite Mesquita e Leyla bianca Correia, Comentários à Lei de LICITAÇÕES e Contratações do Estado da Bahia, Belo Horizonte: fórum, 2006.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, São Paulo: Dialética, 11.ed., 2005.

PENTEADO, Luciano de Camargo. Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire contra factum proprium, disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 04 set. 2006.

RIGOLIN & BOTTINO, Ivan Barbosa e Marco Túlio. Manual Prático das Licitações, São Paulo: Saraiva, 8. ed., 2009.

Notas

  1. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed.. São Paulo: Malheiros. 2006, p. 34/35.
  2. CHARLES, Ronny. Lei de Licitações Públicas Comentadas, 2. ed., Bahia: Juspodvm. 2009, p. 439/441.
  3. Idem, ibidem, p. 438/439.
  4. Art. 78, §10°, da Lei n° 9.433/05.
  5. Para António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, em sua obra já clássica, “Venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos entre si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reacções afectivas que devem ser evitadas” (Da boa-fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 2001, p. 745).
  6. A máxima venire contra factum proprium non potest é estudada como sendo um tratamento típico de exercício inadmissível de uma posição jurídica, a vedação do comportamento contraditório. Essa proibição do comportamento contraditório, relacionada com a tutela da confiança, é implícita no art. 422 do CC, que traz justamente a função integradora da boa-fé. Também é implícita no art. 187 da atual codificação privada, que reconhece como ilícito o abuso de direito (função de controle da boa-fé objetiva). Assim sendo, decorre da interpretação dos Enunciados n. 25, 26 e 170 do CJF, que reconhecem a aplicação da boa-fé objetiva em todas as fases contratuais.
  7. Para Luciano de Camargo Penteado, o venire contra factum proprium “se verifica, basicamente, nas situações em que uma pessoa, durante determinado período de tempo, em geral longo, mas não medido em dias ou anos, comporta-se de certa maneira, gerando a expectativa justificada para outras pessoas que dependem deste seu comportamento, de que ela prosseguirá atuando naquela direção. Ou seja, existe um comportamento inicial que vincula a atuar no mesmo sentido outrora apontado. Em vista disto, existe um investimento, não necessariamente econômico, mas muitas vezes com este caráter, no sentido da continuidade da orientação outrora adotada, que após o referido arco temporal, é alterada por comportamento a ela contrário. Existem, assim, quatro pressupostos do venire: um comportamento, a geração de uma expectativa, o investimento na expectativa gerada ou causada e o comportamento contraditório ao inicial, que se toma como ponto de referência. Na vedação ao comportamento contraditório existem dois comportamentos lícitos, diferidos no tempo, os quais se contradizem de modo direto e não negocial, não podendo a situação, portanto, ser solucionada pelos remédios obrigacionais gerais. São exemplos de comportamento contraditório a demanda por cumprimento de contrato nulo quando a nulidade é de responsabilidade do demandante, a argüição de incompetência de tribunal arbitral e perante a justiça comum, quando existe cláusula arbitral primitivamente questionada, entre outros. Nas fontes romanas, encontra-se, por exemplo, o fragmento adversus factum suum (…) movere contraversias prohibetur’, a propósito de uma situação concreta. Ou seja, contra um fato próprio, não se pode mover uma ação de impugnação. Existe uma vinculação mínima de responsabilidade perante o ato próprio. Mostra-se, portanto, que o fato próprio tem alguma eficácia vinculativa para além dos limites da autonomia privada negocial em sentido estrito” (Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire contra factum proprium. Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 04 set. 2006).