Sérgio Roberto Bacury de Lira ( * )
Este artigo é resultado de uma palestra proferida para os alunos do Curso de Gestão de Órgãos Públicos da UNAMA, no último dia 22 de outubro, na disciplina ministrada pelo Prof. Lucival Teixeira. A temática abordada procura mostrar como os gestores públicos – aqueles que dirigem os órgãos públicos, indistintamente do grau hierárquico de sua função – ainda vêm se comportando e tomando as suas decisões gerenciais mesmo após a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000).
O tema procura fazer uma analogia, por um lado, aos princípios dos 10 mandamentos contidos na Bíblia, no sentido de que o não atendimento de qualquer um desses princípios levaria o homem a cometer um pecado e, por outro lado, à definição do que a religião entende por pecado capital – é assim chamado por dar origem a inúmeros outros pecados e se constitui na raiz de onde brotam vários outros vícios.
A idéia básica contida neste artigo é a de que uma adequada gestão pública tem que se apoiar nos seguintes pilares: planejamento, transparência, controle e responsabilidade. Estes também são os pilares que balizam a Lei de Responsabilidade Fiscal. Evidentemente que além desses princípios ainda é imprescindível que o gestor atue com ética, o que balizará o seu comportamento perante à sociedade que representa.
1º Pecado – O gestor público não programa as suas ações de forma planejada, mas sim as concebe no dia-a-dia, conforme a urgência de cada situação.
Qualquer ação requer planejamento, sob pena de não se alcançar a meta pretendida. No setor público isto é imprescindível, pois as demandas da sociedade em geral são maiores do que a capacidade de atendimento do estado. A Lei de Responsabilidade Fiscal trata esta questão de forma especial, obrigando o gestor público a adotar mecanismos que garantam efetivamente o exercício do planejamento. Para tanto, condiciona com que a ação pública seja planejada através dos seguintes instrumentos legais: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).
Como esses instrumentos se transformam em documentos formais, inclusive exigidos pelos Tribunais de Contas, são elaborados de acordo com o que exige a legislação. Ocorre que por si só não garantem com que a ação pública seja efetivamente realizada de forma planejada. O que ocorre no dia-a-dia de um gestor público, principalmente na esfera municipal, é que a sua ação não é balizada ou apoiada no que está contido nesses instrumentos, ou então que a sua ação somente seja iniciada após a verificação de que a mesma faça parte da sua programação contida nesses instrumentos. O gestor público normalmente vai fazendo acontecer as coisas de acordo com o que está contido na sua cabeça ou dependendo da emergência da situação, e depois a sua área técnica ou o escritório de contabilidade é que dêem o jeito para enquadrar essas ações nesses instrumentos, de forma tal que pareça que foi programado antecipadamente de acordo com o espírito da lei, e que não dê motivos para punição por parte dos Tribunais de Contas.
2º Pecado – O gestor público não dá importância ao orçamento público, concebendo-o como entrave burocrático à sua administração.
Nenhuma pessoa consegue planejar e/ou efetivar seus gastos sem possuir um orçamento. Assim ocorre também no setor público. A legislação exige que para cada despesa a ser realizada ela tem que estar programada no orçamento. O orçamento, todavia, não se resume apenas à disponibilidade financeira que o gestor público possui naquele exercício, mas diz respeito à sua programação de trabalho. Hoje, não é mais possível iniciar novos projetos sem que estes estejam contidos no orçamento, da mesma forma que não se pode incluí-los no orçamento sem que o gestor comprove que isto não afetará a continuidade dos que já se encontram em andamento. Aliás, nada disto será permitido se o gestor não comprovar que a inclusão desses novos projetos não afetará também as despesas de manutenção e conservação do patrimônio público.
Por conta disso e de outras normas legais (como os limites mínimos de despesas em diversas áreas), o gestor público cria uma verdadeira aversão pelo orçamento. O orçamento nunca é visto como um instrumento que pretende organizar e facilitar a ação do gestor, mas sempre como um entrave à sua administração. Procedimentos necessários para que se ocorra a autorização de qualquer despesa no setor público, como a verificação de disponibilidade orçamentária e financeira, são vistos como burocráticos e desnecessários. O gestor público efetiva as despesas e somente após o recebimento das notas fiscais é que a contabilidade procede o seu empenho e a conseqüente inserção da mesma no orçamento. Em vez da despesa ocorrer na seqüência empenho-liquidação-pagamento, na prática ocorre na forma inversa: pagamento-empenho, deixando de ter sentido a fase da liquidação. E, algumas vezes, somente após isto é que se procede as suplementações orçamentárias. Isto ocorre sobretudo na esfera municipal, face a inexistência de um sistema que obrigue o cumprimento das fases da despesa. Se dependesse da vontade de alguns gestores públicos, o documento que contém o orçamento seria literalmente rasgado.
3º Pecado – O gestor público não gosta de descentralizar decisões, pois entende que isto significa perda de poder.
O fundamento básico de uma administração eficiente é que esta funcione de forma integrada, compartilhando decisões entre os seus membros, dado o princípio do planejamento estratégico. Na administração pública não se trabalha sozinho, decorrendo o resultado de qualquer ação governamental da ação coletiva de um conjunto de pessoas ou, no mínimo, de uma determinada equipe de trabalho. Ocorre que as decisões não são totalmente descentralizadas em sua estrutura hierárquica, visto que para o gestor público descentralizar significa transferir o poder da decisão para outrém, ou seja, significa perda de poder político.
Como, em geral, o gestor público procura garantir a sua sobrevivência através do poder político, ocorre que, além de normalmente as decisões políticas se sobreporem sobre as decisões técnicas, em inúmeras situações acaba o gestor concentrando também as decisões técnicas, dificultando a eficácia operacional da sua própria administração.
4º Pecado – O gestor público não investe em capacitação e nem tampouco busca as melhores referências profissionais. O seu foco é político e não técnico.
Uma administração eficiente precisa contar com os melhores profissionais. Um gestor precisa e deve compor a sua equipe de trabalho com pessoas que vão lhe ajudar tecnicamente da forma melhor possível. Existe um provérbio de que um administrador inteligente é aquele que compõe a sua equipe com pessoas mais inteligentes do que ele, pois isto lhe possibilitará assimilar mais conhecimentos.
O que ocorre, na prática, é que a maioria dos gestores públicos procura formar a sua equipe de trabalho a partir de um critério político e não técnico. Em geral, os gestores procuram abrigar nos cargos existentes pessoas que fazem parte do seu grupo político, não procurando trazer para a gestão pública as melhores referências profissionais existentes no mercado. Além do mais, não procuram investir em capacitação e reciclagem profissional, pois normalmente entendem que isto se constitui em despesa (desnecessária) e não em investimento para a melhoria do atendimento do setor público. Como conseqüência, a administração pública evidencia-se ineficiente e sem compromisso com a qualidade dos serviços prestados à sociedade.
5º Pecado – O gestor público tem receio de ser transparente, pois teme ser questionado sobre as suas ações.
Com a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal, tornou-se obrigatório o exercício da transparência das ações desenvolvidas por qualquer gestor público. A gestão fiscal – controle das receitas e despesas públicas, deve ser acompanhada pela sociedade, devendo os gestores públicos disponibilizarem as informações relativas às receitas e gastos efetuados através de publicação e divulgação, inclusive por meio eletrônico.
Até a presente data são raros os casos de divulgação das informações fiscais por parte da administração pública. Em geral, no final de cada exercício são publicados relatórios resumidos de execução orçamentária, mas em uma linguagem técnica que nenhum leigo no assunto consegue entender. Na verdade, não há interesse dos gestores públicos em disponibilizar essas informações de forma desagregada e por períodos contínuos, pois isto permitirá com que os segmentos organizados da sociedade possam avaliar criticamente a sua administração. Em suma, os gestores não se esforçam para serem transparentes no trato da coisa pública.
6º Pecado – O gestor público não tem o hábito de socializar informações e de utilizá-las em sua estratégia de ação.
A informação é a base do conhecimento humano. Na gestão pública a informação é de fundamental importância para a tomada de decisões. Do ponto de vista técnico, tomar uma decisão sem que esta esteja balizada por informações acerca da situação, resultará em uma ação ineficaz. É como se fosse necessário ex-ante uma fotografia da situação, para que a partir de sua análise minuciosa sejam tomadas todas as decisões técnicas e/ou políticas.
Devido a falta de uma ação planejada, e às vezes em decorrência da deficiência técnica da equipe de trabalho, não são produzidas informações para a tomada de decisões na gestão pública. Em geral, não se produzem indicadores de avaliação e desempenho e, mesmo quando existem não são utilizados como parâmetros de condução da coisa pública. Isto dificulta o acompanhamento da gestão administrativa por parte da sociedade, pois as informações não são disponibilizadas nem tampouco socializadas para todos.
7º Pecado – O gestor público fica tentando inventar a roda, quando poderia aperfeiçoar e adequar para a sua realidade situações já existentes.
A demanda da sociedade por ações concretas do setor público em prol da melhoria da qualidade de vida exige, sobretudo, criatividade. A inovação e o aperfeiçoamento tecnológico é vital no setor privado, pois nesse setor o conhecimento e o domínio tecnológico condicionam a competição entre as empresas. No setor público, entretanto, não existe essa preocupação. Para os gestores públicos o importante é que existam condições concretas para que as ações efetivamente ocorram.
Todavia, nessa ânsia de fazer as coisas acontecerem e, principalmente, de serem inéditos em sua ação, não buscam conhecer e adequar para a sua realidade situações ou ações já implementadas em outros lugares e por outros administradores. Ou então, quando conhecem essas experiências, procuram não copiá-las ou adotá-las em sua administração, visto que isto poderia significar falta de iniciativa política. Por conta disso, ficam tentando inventar a roda, quando na maioria das vezes a roda já foi inventada.
8º Pecado – O gestor público ainda não acredita que será punido se cometer erros ou prejuízos à sociedade.
A Lei de Responsabilidade Fiscal introduziu novos conceitos na administração pública, principalmente no que diz respeito ao binômio probidade/eficiência. Em outras palavras, explicitou a necessidade de que a ação pública ocorra baseada nos princípios da moralidade, do combate à corrupção, e do alcance de resultados concretos. Para tanto, introduziu também mecanismos de punição para os maus gestores ou gestores ineficazes do ponto de vista administrativo.
Ocorre que mesmo depois da existência dessa Lei ainda predomina o sentimento da impunidade para o gestor público. Na prática, pelo simples fato de que cometer erros ou prejuízos à sociedade não leva ninguém para a cadeia, faz com que o gestor não se preocupe com a justiça, nem mesmo com os Tribunais de Contas. Além do mais, quando um político é reconduzido ao poder por meio do sufrágio universal mesmo depois de ser acusado publicamente por atos ilícitos, isto estimula e reforça o sentimento da impunidade, dificultando a existência de gestores com condução administrativa e política correta.
9º Pecado – O gestor público administra a coisa pública como se fosse uma administração doméstica e baseada em contabilidade de botequim.
A ausência de planejamento na gestão pública, assim como de decisões descentralizadas, de trabalho em equipe, e de outros procedimentos basilares de qualquer administração, faz com que o gerenciamento da coisa pública ocorra como se fosse uma administração doméstica. O gestor conduz o setor público como se estivesse gerenciando a sua própria casa, não vendo necessidade de prestar esclarecimento às outras pessoas, ou seja, à sociedade.
Por outro lado, por falta de planejamento e controle nas despesas públicas, e até mesmo por não utilização de, no mínimo, um cronograma de desembolso financeiro mensal, ocasiona com que a contabilidade seja igual a de um botequim, isto é, tudo que entra de receita sai automaticamente como despesa, incorrendo com que nos períodos em que a receita é menor surjam inúmeros problemas para a quitação de dívidas junto aos credores.
10º Pecado – O gestor público não se preocupa em ser responsável do ponto de vista legal, mas sim em ser eficiente do ponto de vista político.
A Lei de Responsabilidade Fiscal só permite que o gestor público não cumpra as determinações impostas para a contagem de prazos, os valores mínimos a serem investidos, o pagamento da dívida pública, o valor máximo permitido com a folha de pagamento de pessoal, o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho, quando ocorrer uma calamidade pública, estado de defesa ou de sítio. Não existindo essas situações, é dever do gestor administrar a coisa púbica com probidade, seriedade, competência e eficiência.
Todavia, o gestor público não está preocupado em ser responsável sob o ponto de vista da legislação, pois dentre outros motivos isto condicionará com que ele se sinta limitado e impedido de conduzir as suas ações da forma como deseja e age. A sua intenção é ser eficiente do ponto de vista político, pois atendendo aos apelos e à demanda manifestada por seus pretensos eleitores, garante-lhe a possibilidade de recondução e sobrevivência política.
A existência desses pecados capitais não incrimina o papel desempenhado pelos gestores públicos, da mesma forma que a existência de pecados na Bíblia não condena o ser humano a ser um eterno pecador. Na verdade, tanto lá quanto cá, a sua existência é a certeza da possibilidade de que a qualquer momento alguém poderá cometer um pecado. O gestor público, de espírito tão frágil como qualquer ser humano, sempre está propenso a cometer, pelo menos, um desses pecados. Aliás, quem já não cometeu algum desses pecados? Portanto, qualquer semelhança não é mera coincidência.
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( * ) – Professor de Economia da UFPª, Doutorando em Economia, Diretor Regional Norte da Federação Nacional dos Economistas (FENECON) e recém eleito Conselheiro Efetivo do Conselho Federal de Economia (COFECON).